Os jardins florentinos
É uma tarde morna, de ar parado, como aquelas raras de Lisboa em que não sopra nenhum vento, mas aqui é apenas Maio. A cidade dos Medici estende-se orgulhosa pelas margens do Arno, toda em ocres da Toscana. Ao centro, a mole de Santa Maria dei Fiori, de delicados mármores coloridos, como se estivessem pintados de fresco, erguendo-se a cúpula imensa de Brunelleschi muito acima dos telhados vermelhos dos palazzos. Seis séculos passaram sobre a sua época de ouro, mas facilmente poderíamos regressar no tempo, deambulando nestas ruas antigas, à sombra de igrejas e campanários, nos mercados de colunatas coríntias, as loggias suspensas em severos edifícios, os brasões das famílias às esquinas, e o de Lourenço, o Magnífico, acima de todos. A arte quase nos esmaga, as estátuas enormes na Piazza della Signoria, parecendo moverem-se os músculos de mármore, tão perfeitos.
Mas nesta Florença não há flores nem verde, apenas ocre, a pedra em todo o lado, as multidões de turistas entre lojas caras e vendedores de peles, uns vislumbres do rio cor de areia. Atravessemos a ponte Vecchio, onde os mesmos ourives se sentam indolentes nas suas bancas de luxo há 600 anos. Acima de nós corre, secreto, o corredor de Vasari, ligando os Uffizi e a cidade medieval ao palácio Pitti, do outro lado do rio. Entremos neste edifício, passemos estes arcos e este pátio adormecido, subamos mais um túnel, e eis-nos no oásis verde de Florença, neste paraíso renascentista, os jardins Boboli.
Aqui os grandes senhores da cidade organizavam esplêndidas festas, em magníficos anfiteatros repletos de estátuas clássicas, ou perdendo-se em labirintos de buxo. Hoje são mais tranquilos, embalam-nos as fontes e o verde repousante dos ciprestes, correm a rir crianças de escola. Dois italianos cinquentões pedem-me uma foto, Florença em fundo, como enamorados - "este senhor simpático ofereceu-se, espontaneamente, para nos fotografar", ri-se ela, muito pintada. Noutro canto do jardim, na relva, os mesmos. Ofereço-me de novo - muitas risadas, quase uma amizade ali mesmo, entre algaraviada italiana.
Dos jardins Boboli sai-se para a Costa San Giorgio, inclinada entre muros, e um pouco abaixo esconde-se outra surpresa. A entrada é numa pequena casa de campo, dir-se-ia que estamos em pleno campo, e atrás dos portões floreados, outra luxúria, o aroma das magnólias ocupa-nos os sentidos ainda antes de percebermos o labirinto de vegetação e flores, em caramanchões e galerias sinuosas. Os jardins Bardini! O declive aqui é grande, o desenho à inglesa, mas o tempo é curto e uma voz monocórdica e metálica anuncia em mau inglês que o jardim encerra em 15 minutos. Há tempo para parar numa loggia sossegada, abrindo-se sobre a cidade, com a massa do convento franciscano de Santa Croce mesmo em frente.
Saímos por escadinhas e patamares e estamos no bairro de San Nicoló, despretensioso e autêntico, onde os florentinos se reúnem nos bares do pequeno largo, mesmo antes da saída das muralhas. É por aqui, a via chama-se del Monte alle Croci, subamos então uma via-sacra não demasiadamente dolorosa, com um odor a flores enjoativo. A via abre-se num gigantesco parque de estacionamento, o sítio mais feio de Florença se não fosse a vista sobre toda a cidade, o Duomo, os palácios, as torres, o rio. Os autocarros despejam turistas que se acotovelam na amurada, deixemos este ruído e subamos mais, a via segue entre ciprestes escondidos.
Portões de ferro e mais uma escadaria, entre lápides tumulares. Aqui está o segredo mais bem guardado de Florença: o mosteiro românico de San Miniato al Monte, um estrutura do século XI que alberga os ossos do mártir e uma pequena comunidade monástica Olivetana desde o século XIV. A igreja está na penumbra, vazia, mal deixando ver os frescos medievais e os ornamentados mosaicos do pavimento, ou a capela funerária riquíssima do cardeal de Portugal, o embaixador na corte florentina. Na cripta, de abóbadas baixas, um velho monge cego canta sozinho as vésperas, saindo apoiado noutro jovem. Uma pequena lâmpada marca o local das relíquias, e o ar é antigo, secular.
Deixamo-nos ficar na soleira da igreja. Lá dentro ecoam os acordes tubulares do órgão onde um monge ensaia; cá fora, as nuvens pesam sobre a tarde parada, silenciosa, muito longe da cidade lá em baixo.
Mas nesta Florença não há flores nem verde, apenas ocre, a pedra em todo o lado, as multidões de turistas entre lojas caras e vendedores de peles, uns vislumbres do rio cor de areia. Atravessemos a ponte Vecchio, onde os mesmos ourives se sentam indolentes nas suas bancas de luxo há 600 anos. Acima de nós corre, secreto, o corredor de Vasari, ligando os Uffizi e a cidade medieval ao palácio Pitti, do outro lado do rio. Entremos neste edifício, passemos estes arcos e este pátio adormecido, subamos mais um túnel, e eis-nos no oásis verde de Florença, neste paraíso renascentista, os jardins Boboli.
Dos jardins Boboli sai-se para a Costa San Giorgio, inclinada entre muros, e um pouco abaixo esconde-se outra surpresa. A entrada é numa pequena casa de campo, dir-se-ia que estamos em pleno campo, e atrás dos portões floreados, outra luxúria, o aroma das magnólias ocupa-nos os sentidos ainda antes de percebermos o labirinto de vegetação e flores, em caramanchões e galerias sinuosas. Os jardins Bardini! O declive aqui é grande, o desenho à inglesa, mas o tempo é curto e uma voz monocórdica e metálica anuncia em mau inglês que o jardim encerra em 15 minutos. Há tempo para parar numa loggia sossegada, abrindo-se sobre a cidade, com a massa do convento franciscano de Santa Croce mesmo em frente.
Saímos por escadinhas e patamares e estamos no bairro de San Nicoló, despretensioso e autêntico, onde os florentinos se reúnem nos bares do pequeno largo, mesmo antes da saída das muralhas. É por aqui, a via chama-se del Monte alle Croci, subamos então uma via-sacra não demasiadamente dolorosa, com um odor a flores enjoativo. A via abre-se num gigantesco parque de estacionamento, o sítio mais feio de Florença se não fosse a vista sobre toda a cidade, o Duomo, os palácios, as torres, o rio. Os autocarros despejam turistas que se acotovelam na amurada, deixemos este ruído e subamos mais, a via segue entre ciprestes escondidos.
Deixamo-nos ficar na soleira da igreja. Lá dentro ecoam os acordes tubulares do órgão onde um monge ensaia; cá fora, as nuvens pesam sobre a tarde parada, silenciosa, muito longe da cidade lá em baixo.
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