A Serra Maior: do Casal à Torre


Sete horas e 30 minutos no lugar de Casal da Serra, Tortosendo, no declive ainda suave do lado sudeste da Serra da Estrela. O Zêzere corre sossegado sob um manto de neblina, as luzes tremeluzem da noite ensonada, o silêncio é espesso ainda. A Serra espera.



Tó da Bouça espera-nos no pequeno largo do clube, ao lusco-fusco da madrugada, e dispara logo "meto uma ou duas garrafas de vinho?", a merenda à antiga, enrolada em pano, um saco de plástico pendurado de um cajado que leva ao ombro, serra acima.

Embrenhamo-nos nos caminhos, floresta adentro, nos pinhais suaves que cobrem as encostas, deixando o vale imóvel submerso em nuvens. O Tó, três dentes perdidos no maxilar superior, fala sem parar, com a avidez de um pastor habituado a estar sozinho, quase aos gritos, que os anos entre as máquinas da fiação não lhe perdoaram ao ouvido. Ali mora este, que casou com aquela, lá em baixo pegam as terras daquele, esse já era rico com juntas de bois e duas cabradas, tudo temperado com um sotaque peculiar da serra. Ali vem o tio Elói, velho ermita de ar profético, a arrastar as galochas rotas, apoiado na montada e seguido pelo cão, medroso. Mora num casebre sem água nem luz, metido numa cova da montanha, e vai ao pão a Tortosendo.



Acima está a Pedra da Mesa, cabeço granítico sobranceiro à Covilhã, a ver-se já a meia encosta o antigo sanatório e a Varanda dos Carqueijais. Aqui é já o reino da giesta, da urze, da carqueja, do zimbro. Tó encarrega-se de alimentar o grupo: pão em grossas fatias, queijo fresco caseiro, naco de presunto da salgadeira, regado com sumo de uva fermentada.

A subida progride até à primeira crista, a 1200m, a caminho das Penhas da Saúde. O sol já vai aberto, os penedos crescem na paisagem, que se vai tornando mais agreste, serrana, amaciada por regatos e pequenas represas de margens verdes. Vêem-se já os telhados afilados dos albergues de montanha, a estância das Penhas a estender-se no planalto.

Aqui o grupo divide-se, as pernas mais cansadas ficam por aqui, porque há que apressar o passo até à Torre, o tecto do Portugal continental. É 1 hora, ainda hesito quando sinto o aroma a comida e o calor que emana do restaurante nas Penhas, mas o caminho espera, não há dúvidas.

Contornamos a barragem a que chamam lago do Viriato (o tal dos Montes Hermínios...), ao fundo a mole maciça que é o planalto central da serra, com os seus três Cântaros graníticos como sentinelas: o Gordo, o Magro e o Raso, e logo ao lado as torres metereológicas que marcam o ponto mais alto do território continental. A separar-nos, quebrando a rudeza da paisagem, o suave prado da Nave da Santo António, completamente plano, com as suas turfeiras fofas de cores desmaiadas. Falta-nos vencer um obstáculo que, desta distância, parece formidável - o Espinhaço de Cão, crista rochosa quase a pique que é a parede de um circo glaciar, o Covão do Ferro. Tudo aqui parece telúrico, como se caminhassemos entre eras geológicas e o tempo presente fosse um grão de areia, a lembrar-nos que estes gigantescos penedos estarão aqui muitos milhares de anos depois de termos desaparecido.


Aceleramos o passo, porque sobe um vento cortante como lâminas do lado sul, de Unhais. O trilho do espinhaço aparece escondido na paisagem rochosa, mas bem marcado, talhado por mãos humanas, e progredimos na encosta quase sem dar por isso. É um cenário de tragédia: no fundo do covão jaz uma carcaça de automóvel, ainda vermelha, informe, e cruzamos um rasto de peças retorcidas, que o olhar acompanha até ao muro da estrada que corre centenas de metros acima...

A Senhora da Estrela ("a santa") foi esculpida entre gigantescas massas de granito, que formam as curiosas queijeiras, torres de cilindros empilhados como queijos enormes, quebrados e moldados pela erosão. Daqui falta pouco até ao fim, um salto entre manchas de neve, o branco e o negro. O topo é suavemente arredondado, coroado pelas estranhas construções metereológicas e pelo marco geodésico que diz, aqui sim: 1993 metros acima do mar. É um pouco um anti-climax, terminar a ascensão num parque de estacionamento onde camionetas descarregam excitados turistas que vão escorregar meia dúzia de metros em trenós improvisados ou correm a comprar queijos e enchidos num estranho supermercado.

Na descida contemplamos o Cântaro Magro, que lembra um cone vulcânico, hirto sobre o Covão da Ametade e a nascente do Zêzere. Há gente lá em cima, tresloucados, ainda iluminados pelos derradeiros raios de sol. A noite nasce e a Serra volta a ser só dela.






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