A Mouraria é noutro país
Há mais de meio século que
Arminda deixou Alcafaz, pequena aldeia de xisto nas margens do Ceira, para vir
parar às portas da Rua do Capelão, no coração mouro de Lisboa. Quem vem da
capelinha da Senhora da Saúde e mergulha sem medo nas ruas estreitas deste
bairro antigo vê-a logo, à porta de um cubículo, na viela escura onde nasceu a
famosa Severa. Lá dentro há toalhas bordadas à espera de turistas, mas Arminda
pega-se à conversa cá fora, indiferente aos pingos de chuva, feliz por falar no
seu Ceira natal.
É domingo de chuva e da Severa
nem sinal, mas pressente-se o fado nas travessas e escadinhas da Mouraria, nem
que seja pelos retratos desbotados de glórias antigas que pintaram nas paredes.
A Mouraria é velha e há muito que nela se cruzam povos e gentes de todos os
tipos. Quando chego à Rua do Marquês de Ponte de Lima, passa um velho curvado sem
idade, esbraceja aos gritos uma rapariga escanzelada, de cara envelhecida pela
droga, desce um par de senhoras, de sacos de compras, a tempo da missa das 6,
miram dois paquistaneses à esquina, sem pressa para nada. Só não passam os
habituais tuk-tuks de turistas, deve ser o medo da chuva.
Subo as escadinhas do mesmo
Marquês (quem seria?). Os prédios empinam-se em direcção do castelo, oculto ali
mesmo atrás. Mudaram de funções, agora há hostels
modernos onde pernoitam jovens loiros nórdicos e apartamentos estilo
retro-chique para alugar. Ao alto, proclama um grafitti colorido: “Com você,
TUDO. Sem você, NADA”. Será o fado em versão novela brasileira?
Sigo pela Costa do Castelo,
sossegada. Discreto por fora, o Teatro Taborda abre-se em janelões sobre a
Lisboa antiga, cheio da luz molhada da tarde. Há arte exposta por ali e um
pequeno bar de mesas feitas de portas antigas que convida a ficar, a ver a
chuva.
Sobe-se à Graça. Dizem que aqui
acampou arraiais D. Afonso Henriques, a olhar as muralhas da Lisboa muçulmana,
onde hoje está o enorme edifício da igreja e convento da Graça. A vista abarca
algumas das sete colinas, cobertas de casario da cor dos telhados: o castelo à
esquerda, Sant’Ana em frente, mais ao fundo o Chiado e S. Pedro de Alcântara, a
Senhora do Monte entre pinheiros, à direita. Na tarde húmida faísca um pouco de
cor-de-laranja na direcção poente.
Espreitamos a Vila Bertha, ali
perto, antigo bairro operário do início do século XX, que conserva ainda um
charme particular nas suas varandas de ferro iguais e murais pintados. Está
deserta, na penumbra só o vulto de uma velha numa janela de primeiro andar.
Perguntei-lhe quem era a Berta: “já morreu há muito”.
Afinal, sempre há fado na Graça.
É na Tasca do Jaime, pequeno estabelecimento de paredes de azulejos onde D.
Laura comanda os clientes entre abraços e pastéis de bacalhau quentinhos. As
luzes já baixaram, os guitarristas sentam-se ao fundo, João Soeiro canta sobre
uma Maria morena que o deixou de amores, coisa séria. À porta, um rufia de
camisola de capuz e piercing emociona-se, mostrando com orgulho o CD do
artista. É claramente um conhecedor. Por entre copos vamos ficando à porta, lá
dentro segue o fado vadio, cá fora cai a noite sobre o bulício da Rua da Graça.
A luz fraca do crepúsculo já
quase não deixa ver os contornos do amplo terraço da igreja da Graça. Ao longe o Tejo espraia-se, cinzento e baço, em direcção à foz, enquanto se
acendem as luzes de Lisboa. Abaixo, na Mouraria, Arminda sonha, seguramente, em
meter os pés na água fria do seu Ceira, como nos Verões de quando era pequena.
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