Da Cerdeira vê-se o mundo
25 de Março de 2018
Quando a conheci, a aldeia era
uma visão morta, pitoresca nos seus silvados e limoeiros a crescerem dentro de
quatro paredes, sentinela silenciosa do abandono destas terras rudes, de gente
rude e vidas rudes. A Lousã é já ali em baixo mas há 50 anos era uma jornada e
tanto, por estreitos trilhos de lama e pedras. Lembro-me da história
cinematográfica: o último habitante matou a vizinha por uma disputa de águas e
dali partiu para a cadeia, sem deixar testemunhas que não as pedras. Kerstin e
o marido inverteram este destino há 3 décadas, quando aterraram da Alemanha
nestes altos da serra da Lousã e aqui ficaram. Aqui há um projecto de turismo rural sustentável, de amor, porque só
pode ser de amor, e a aldeia renasceu, hoje tem gente a descer as estreitas
vielas negras, os pequenos alpendres, as paredes de xisto primorosamente
recuperadas, há artesãos de novo com as mãos no barro, curiosas esculturas e um
forno de tijolos japonês único na península. A aldeia foi salva pela arte. Kerstin parece fazer parte deste sítio desde sempre, entre risos e um português sem qualquer sotaque. E da
Cerdeira vê-se o mundo, as encostas fundas da serra já não se fecham como muros
verdes mas abrem-se acolhedoras a quem visita, como o V que fazem as páginas
dum livro a abrir. A vista é solene, magníficos os primeiros raios de sol a
rasgar as muitas nuvens que ainda hão-de chover hoje, o silêncio ainda é
antigo, a natureza quieta.
De tarde falávamos de literatura
enquanto a infatigável Ana almoçava na mesa do lado, ao mesmo tempo que se
metia na conversa para comentar Alexandra David-Néel, famosa escritora,
jornalista, viajante, orientalista, cantora, maçon e budista, a primeira mulher
europeia a chegar a Lhasa nos anos 20. O Tibete aqui na cozinha do Candal.
A estrada fecha-se num túnel
serpenteante, onde só se adivinha um tecto arbóreo e sobem rolos de vapor à
frente dos faróis do carro. - Cuidado, pode haver javalis. Não havia, mas quase
à meia-noite uma fila de caminhantes em mochilas enroladas de impermeáveis
surge nas sombras da berma, como espectros coloridos. Conheço a aldeia,
lembro-me dela alcandorada numa encosta verde e íngreme, com um riacho frio no
fundo, um sítio onde não se construiria nenhuma aldeia, achava eu, e de
estarmos sentados como gatos num muro de xisto já sem telhado numa tarde morna
de Verão, eu tinha 20 anos e tanto tempo.
Já dorme a aldeia, menos o riacho
que vem cheio das chuvas de Março, as ripas de xisto do chão brilham húmidas na
luz mortiça. Encontro a chave no vaso, como me disseram, e a casa é lá em
baixo, uma avenida de pedra em formato aldeia, inclinada e retorcida. Kerstin
surge do nada para me dar as boas-vindas e a aldeia torna-se subitamente
humana, hospitaleira. Estou na Cerdeira.

Jantei no Candal, abaixo, encosto-me
ao calor da lareira decorada com hastes de veados enquanto espero a sopa
fumegante de lavrador das mãos de Ana, que cantarola um fado. Mário faz a magia
na cozinha, num forno tradicional que ele próprio construiu, de onde emerge, extraordinária,
a chanfana em potes de barro negro, cozinhada toda a noite, que mais tarde
hei-de provar. A mãe deste nasceu numa outra aldeia agora famosa, o Talasnal,
onde inventou os Talasnicos,
milionésima versão da doçaria regional portuguesa.

A serra sabe ser doce, tranquila,
um éden de folhagem onde correm cheios os riachos na primavera e no outono se
cobrem os solos de folhas douradas e dos ouriços das castanhas, um ripanço para
o viajante. Mas aqui também habita a bruteza dos lugares, a aridez, a
devastação de uma natureza implacável, que no Inverno tudo mergulha numa bruma
fria e viscosa, de noites temerosas e sinistras, e em Verões escaldantes tudo
devora em labaredas, um demónio de fogo insaciável que leva vidas e floresta e
tudo.
Nessa noite dormi um sono de
pedra e sonhei com as bramas de veados na serra e uma mulher de mãos grossas a
lamentar-se que lhe roubam a água, ai, como vai ela regar? A aldeia guarda as
suas histórias.
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