Do café e da selva

22 de Julho de 2018

Meu caro Miguel,

Eis Alex Pontes, guia turístico, São-tomense com página de Facebook, site e três irmãos em Lisboa, a fazer pela vida e a levar os visitantes a ver a ilha toda, como nenhum outro, leve-leve. Está apresentado o nosso guia, rapaz franzino, barba rala a fazer parecer mais crescido, que nos surgiu do nada acabávamos de sair da aerogare. Ontem ajustámos com ele visitas e preços, no terraço do hotel, nós e a Rosema, a leve e omnipresente cerveja da ilha.

O dia é morno como todos aqui, o céu branco da "gravana", a estação seca, um sol baço que não abrasa nem fere a vista. A cidade dormita, decadente, espalhada ao longo da baía de Ana Chaves, bordejada por uma longa balaustrada branca e arruinada, ausente a espaços, os passeios arrancados já pela incúria ou pelas bojudas raízes das árvores ornamentais, tomadas de poderes sobre-vegetais. O mar é um lago prateado, pastoso, nem sequer chapinha nas estacas do pontão decrépito onde se aglomeram pescadores e vendedoras de peixe entre alguidares onde se alinham, tesos, os rabos dos atuns.

Deixa a baía, olha agora esse coração verde da ilha, por estes meses sempre envolto nas suas brumosas humidades. São Tomé são três estradas, por agora aceitáveis, quase boas em tiradas longas: a do Norte, a do Sul e a do Centro, destino de hoje, pela cidade da Trindade e Bom Sucesso. O Toyota sobe, às curvas entre fiadas de frágeis habitações de madeira, muitas sobre estacas finas como pernilongos, outras verdadeiras barracas, uma profusão de pequenos estabelecimentos, vendas, oficinas, gente pelas bermas, muitos à espera de algo, as crianças que brincam e acenam, e um restolhar de bananeiras a encher o resto todo. Em cima, suspensas de grandes arvoredos, fruta-pão e jacas túrgidas. A comida, literalmente, cai do céu.



Em Batepá, um simples marco colorido assinala o terrível episódio do massacre que, já bem no meio do século XX, aqui ocorreu contra revoltosos serviçais das roças, exigindo melhores condições de trabalho. Não há mágoa nas palavras de Alex, o passado já lá vai e hoje vive-se leve-leve. Olha agora a Trindade, lugarejo a que chamam cidade, será porque lá no alto se esconde a residência oficial do presidente? Uma praceta razoavelmente bem cuidada, fachadas simples de cores garridas, no outeiro a igreja paroquial onde depois faremos puzzles com a criançada negra: Asterix para os meninos, Frozen para as meninas.

Está mais fresco e o verde forra já os dois lados da estrada, aqui à direita os pilares assinalam Monte- Café, a que foi uma das grandes roças da ilha. Chebani recebe-nos, afável no seu português irrepreensível, carregando nos RR como muitos São-tomenses. É um dos responsáveis pela associação - cooperativa que gere os destinos da roça e a salva da ruína, mantendo a produção do que foi considerado "o melhor café do mundo", enquanto conta com orgulho o dia em que foi a Roma a uma feira internacional e regressou com o título e a esperança de que, afinal, pode haver um futuro em São Tomé.



Aqui vive gente, como em tantas outras roças, as sanzalas antigas atulhadas de famílias, onde vão anexando novos barracões. Felizmente, o velho secador de café e cacau está intacto, incluindo a sua galeria superior onde ainda se alinham as carretas nos carris, outrora carregados com a fava e o grão prontos para secar e torrar - o ouro de São Tomé. Também o hospital, imponente ao alto, está intacto, as oficinas são hoje um pequeno museu e a casa dos encarregados é habitada por descendentes de Portugueses. No fim servem-nos a degustação: arábica, robusta e blend, em cafeteira à maneira Sãotomense, e os aromáticos vapores, sem o amargor do expresso em Lisboa, inebriam-nos a alma.



Espera, que a ilha é pequena mas há tanto para ver e em todas as paragens um bom-dia, dois dedos de conversa, fácil-fácil. Ainda vamos à cascata de São Nicolau, nesta época um magro véu que mal tapa a negra falésia vulcânica de onde se projecta, e o pobre jardim botânico onde o velho Estevão debita nomes científicos e curiosidades medicinais.

Não, sabias tu que ali abaixo, na roça Saudade (o nome não podia ser melhor escolhido) nasceu o nosso Almada, que é do mundo todo? E que, morra Dantas ou não, ali ressuscitou ele em mãos cuidadas, que nos recebem de sorriso franco numa varanda tropical inexcedível sobre a selva, para uma inesperada refeição gourmet, a fazer corar de vergonha muitos spots da moda em Lisboa? O "Mola" e o "Caranguejo", exímios no serviço e na recitação dos ingredientes, e no pátio em baixo as "mãos de fada" que nos servem o néctar preto e fumegante.

Portugal tão longe e, afinal, aqui está ele - escuta o Almada, enquanto bebes o teu café: "O povo completo será aquele que tiver reunido em seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades!".

Até breve.














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