Tieta do Agreste
Caro Pedro,
antes que tentes adivinhar, esclareço-te que aterrei no ponto mais oriental do Brasil...aquele que mais se aproxima do continente Africano e que não deixa dúvidas sobre a tese de que um dia o mundo foi uma terra só. Este Recife que, no entanto deixa esmorecer o que nos encanta no Brasil da novela, da música e do redentor, não foi no entanto o alvo da visita. O destino foi, por via do imperativo científico na forma de um encontro informal, um pequeno município do estado da Paraíba. Um dia baptizada de Bruxaxá, por influência de um homónimo teu, também luso e com esse apelido que, pelas boas relações com os indígenas ali terá aberto a primeira hospedaria, Areia é o nome reconhecido hoje, pelos habitantes da cidade e da região, e parece dever-se ao riacho com bancos de areia branca que ali passava.
Os mais de 200 Km que separam o aeroporto do Recife e Areia foram percorridos em duas horas e quarenta minutos devido ao piso das estradas, pouco amigo dos automóveis, e ao receio da lei atenta à velocidade, num país em que a primeira causa de morte não é, de todo, devido a acidentes de viação. Já perto de Areia, Alagoa Grande dá-nos as boas vindas com a homenagem ao cantor e compositor de forró e samba, José Gomes Filho, conhecido por Jackson do Pandeiro. A porta de entrada nesta cidade cede passagem através de uma pandeireta gigante suspensa que, em memória do músico, se ergue sobre nós, insinuando ritmos que o povo brasileiro conserva nos genes. Vinte quilómetros depois, é possível entrar na pacata cidade do sertão onde a cigarra canta (significado indígena de Bruxaxá). Conta-se que o lugarejo nasceu efectivamente de uma cameleira que deu o nome á primeira estrada. A Rua da Cameleira ficou no entanto vazia quando em 2005 o perfeito da cidade mandou cortar o arbusto por transtornar a passagem. Felizmente são conservados alguns dos maiores símbolos da região, permitindo que a história seja escrita a 4 dimensões.
Como noutros locais do “novo mundo do suão”, é possível reviver em Areia grande parte da história Brasileira, assente no comércio de escravos, na plantação de agave e algodão e no processamento da cana de açúcar... Na realidade, contou-me o guia que nos levou em passeio numa das tardes, Areia não tinha máquinas para processar e refinar o açúcar, pelo que a rapadura marcou a produção regional durante muito tempo, mantendo-se o fabrico sazonal acessível ao turismo, normalmente de Julho a Dezembro. Mais tarde chegou o álcool, e a cachaça destronou o doce original da região, passando aquele ao lugar de segundo subproduto. Numa viagem ao centro, é possível prender os olhos e perdê-los, vezes sem fim, nas cores distintas que são apanágio deste país tropical e que também aqui, nos cubos que se tornam casas, lembram as penas das aves exóticas e a diversidade de fauna e flora da região. O facto de não ter sido descaracterizado da sua forma original, torna difícil o acesso por outra via que não seja a pedonal. Ao chegar, damos de caras com o busto de quem imortalizou o país na arte da representação mais consagrada e difundida do momento da independência brasileira, recordando o grito de D. Pedro nos campos do Ypiranga. Pedro Américo assinou assim a sua eternidade em Areia. Aqui e ali, os negros originais das terras também são lembrados, da forma mais violenta que possa ser reconhecida pela sensibilidade humana. As casas grandes, sempre numa elevação que permitia o controlo dos engenhos por parte dos “senhores”, registam nas paredes histórias tristes e macabras de atrocidades contadas na primeira pessoa e que nos deixam confusos... Não soubéssemos do que o Homem é capaz e poderíamos mesmo aceitar como criatividade maior num guia de drama cinematográfico. Foi assim que conheci, por exemplo, a história do bacalhau dado aos escravos, e que se afigurava sem sentido face aos valores de então, não fosse a informação suplementar de que a oferta era selecta e originária dos navios que mais tempo tinham andado no mar e por isso com maior probabilidade de contaminação. Nos engenhos, armazéns com mecânica sofisticada para o fabrico da rapadura, as moendas de madeira, movidas a água ou por tracção animal, arrepiam pelo que escondem. A tracção era preferencialmente feita por bois mas de quando em quando caberia aos escravos tal tarefa. Tantas vezes sacrificados a favor do trabalho forçado e sem piedade dos “seus donos” que se preocupavam mais com o prejuízo de um escravo sem mão para trabalhar do que com a mão decepada e desfeita na rapadura, eram libertados pela inutilidade que tinham então e usados para conveniências de desnecessária descrição.
A habitação era um dos sóbrios sinais de status e quem tinha “eiras, beiras e tribeiras” era privilegiadamente considerado na sociedade dos séculos XVII e XVIII. Para além do significado que a tradição conferiu ao ditado (“Sem eira nem beira”), estas singularidades podem ser hoje testemunhadas com os olhos na história de Paraíba e de Areia. O teatro Minerva traduz o enriquecimento cultural daquele povo que em 1959 ergueu pela própria mão o direito ao conhecimento universal competindo mesmo com João Pessoa, capital do estado e que à data, não dispunha desta modalidade artística. Também a Universidade nasceu ali, por caminhos tortos mas justos já que a razão para a implementação foi trazer homens, principais frequentadores das escolas superiores, às mulheres da terra com a pretensão de aumentar a população. Com este propósito fez-se em Areia a primeira instituição universitária de Paraíba.
Os solos áridos a caminho do sertão são percorridos com dezenas de estórias e de história que vale a pena percorrer com todos os sentidos.
Em vários momentos dei por mim a incluir-me na novela que em criança assisti vezes sem conta, e a evocar a Tieta de um agreste que eu não conhecia e que não imaginava tão rico em contrastes que chocam pelo comportamento imoral e revoltante da época da escravatura, com a história, emoção e valor das pessoas que hoje compõem a vila. E já de regresso a casa penso que, afinal de contas, se num mundo em que o Homem é cada vez mais desprovido de princípios fundamentais que encantam pelo desinteresse e simplicidade, podemos encontrar isto, valerá sempre a pena visitar Areia e orgulharmo-nos de lá ter estado.
Um abraço e até breve
Miguel Meira e Cruz
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