A desolação de Shira
Dia 2.
Segunda, 10 Fev 2014
O sono foi profundo e retemperador, apesar das pesadas chuvas da madrugada. Despertar às 7, pequeno-almoço na tenda de refeições, abundante: papas de aveia, tostas, omeletes, bananas (Ndizi), chá ou leite em pó. São 8h40 quando finalmente iniciamos a marcha, com o acampamento quase todo levantado. O ar exala humidade, pinga ainda e patinamos um pouco no trilho de lama já pisada pelos mais madrugadores. Embrenhamo-nos na floresta.
E que floresta! É um mergulho no Jurássico, gigantescas árvores surgem como pináculos, ou então de troncos retorcidos, torturadas, e longos líquenes pendendo dos seus ramos como barbas de druida. O caminho sobe e desce, tortuoso, cruzando pequenos riachos, um assombro de vegetação e de flores, como a Protea kilimanjarica, de grossas cascas de aspecto pré-histórico mas abrindo-se em delicadas corolas amarelo-claro. Freddie vai explicando, aqui o Yellow Wood, ali a Christmas Tree, coberta de líquenes, flores exóticas com nomes latinos ou em Swahili.
Cruzamos a linha dos 3000 metros e de súbito os troncos encolhem, mirrados, e ficam apenas uma espécie de cedros espessos, do tamanho de um homem, e as abundantes Proteas. A vista abre-se em declives ondulantes a perder de vista na neblina, antigos rios de lava, hoje a escorrer verde.
Almoçamos nuns penedos, observando a longa linha de caminhantes que serpenteiam ao longe, vindos de Mti Mkubwa, mais lentos que nós. Tinham-nos dito que a rota Lemosho é muito menos visitada, por vezes até deserta, mas isso claramente mudou nos últimos anos, tal é o número de viajantes aqui, como em todo o Parque Nacional do Kilimanjaro. As autoridades não impõem limite de entradas, limitam-se a cobrar as chorudas taxas diárias... Chegam os ingleses do Rajastão, que avisam, divertidos - "your friend Sérgio is long gone, he was running!".
A chuva. Durante a travessia da floresta, apesar da denominação "rainforest", quase não choveu. Agora que ascendemos por uma crista batida pelo vento, contornando penosamente Shira Ridge para atingirmos o planalto, a antiga cratera colapsada de Shira, grossas gotas de água atingem-nos em força, subitamente. No que me parece instantâneo, o caminho transforma-se num rio, cruzado por muitos outros riachos, a água a atravessar tudo, oblíqua e impiedosa, desafiando o GoreTex e outras maravilhas da técnica. Os carregadores passam por mim a correr, de súbito estou sozinho na desolação, chapinhando na lama, de calças encharcadas e alma amargurada. A charneca é inóspita, gelada, varrida por ventos agrestes, como se estivesse nas moorlands do Devon e o cão dos Baskerville rondasse por ali.
No dilúvio surge Constantine, de chapéu de chuva, sorridente - "not so good today!". Uma hora de imersão até ao campo de Shira 1, um amontoado de tendas no lamaçal e gente de ar perdido e impermeável garrido.
Quando chega a hora de jantar, a chuva pára e fica uma estranha luz crepuscular, a fazer surgir as silhuetas fantasmagóricas dos picos de Shira Ridge. Lavamo-nos e ressuscitamos com uma refeição quente, fumegante, de peixe frito, vegetais e arroz.
À luz da lua crescente, Kibo surge finalmente, nevado, imóvel, descoberto do seu manto de névoas, como uma deusa nocturna.
Altitude: 2790m - 3505m
Tempo: 7h (8h40-15h40)
Segunda, 10 Fev 2014
O sono foi profundo e retemperador, apesar das pesadas chuvas da madrugada. Despertar às 7, pequeno-almoço na tenda de refeições, abundante: papas de aveia, tostas, omeletes, bananas (Ndizi), chá ou leite em pó. São 8h40 quando finalmente iniciamos a marcha, com o acampamento quase todo levantado. O ar exala humidade, pinga ainda e patinamos um pouco no trilho de lama já pisada pelos mais madrugadores. Embrenhamo-nos na floresta.
Cruzamos a linha dos 3000 metros e de súbito os troncos encolhem, mirrados, e ficam apenas uma espécie de cedros espessos, do tamanho de um homem, e as abundantes Proteas. A vista abre-se em declives ondulantes a perder de vista na neblina, antigos rios de lava, hoje a escorrer verde.
A chuva. Durante a travessia da floresta, apesar da denominação "rainforest", quase não choveu. Agora que ascendemos por uma crista batida pelo vento, contornando penosamente Shira Ridge para atingirmos o planalto, a antiga cratera colapsada de Shira, grossas gotas de água atingem-nos em força, subitamente. No que me parece instantâneo, o caminho transforma-se num rio, cruzado por muitos outros riachos, a água a atravessar tudo, oblíqua e impiedosa, desafiando o GoreTex e outras maravilhas da técnica. Os carregadores passam por mim a correr, de súbito estou sozinho na desolação, chapinhando na lama, de calças encharcadas e alma amargurada. A charneca é inóspita, gelada, varrida por ventos agrestes, como se estivesse nas moorlands do Devon e o cão dos Baskerville rondasse por ali.
No dilúvio surge Constantine, de chapéu de chuva, sorridente - "not so good today!". Uma hora de imersão até ao campo de Shira 1, um amontoado de tendas no lamaçal e gente de ar perdido e impermeável garrido.
Quando chega a hora de jantar, a chuva pára e fica uma estranha luz crepuscular, a fazer surgir as silhuetas fantasmagóricas dos picos de Shira Ridge. Lavamo-nos e ressuscitamos com uma refeição quente, fumegante, de peixe frito, vegetais e arroz.
À luz da lua crescente, Kibo surge finalmente, nevado, imóvel, descoberto do seu manto de névoas, como uma deusa nocturna.
Altitude: 2790m - 3505m
Tempo: 7h (8h40-15h40)
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