Roskilde e os reis mortos

“Shh! Shh! Venha!” A voz chamava entre as colunas brancas e vermelhas do deambulatório da Catedral de Roskilde, ainda mal acabavam de soar os últimos acordes do órgão. O serviço religioso da Reverenda Ulla acabara de terminar, a magra congregação mal ocupava uma dúzia de bancos, na luz coada da tarde que enchia o vasto templo. De traços simples, apenas interrompidos pelo púlpito de alabastro trabalhado e pelos túmulos monumentais dos reis da Dinamarca, aqui estão mil anos de história.

A voz insistente pertencia a uma mulher de gabardine e lenço, curvada mas de olhar vivo, seguramente octogenária, e chamava-me para uma pequena refeição que a congregação preparara no edifício anexo. Lá dentro, a pastora, agora sem as rígidas vestes clericais luteranas, loira e radiante, recebia o seu improvisado rebanho, um misto de famílias de língua inglesa, velhos pensionistas, refugiados negros e turistas desprevenidos como eu.

Roskilde, antiga sede da monarquia, tem hoje o aspecto de uma letárgica vila inglesa, com uma praça em obras, cafés adormecidos e caminhos ajardinados descendo suavemente a colina até à beira-mar, no extremo do fjord. Tem apenas duas atracções: a catedral, local da primeira igreja cristã do reino, construída em 980 por Harald Bluetooth (cujo nome mais tarde baptizou a tecnologia!) e onde repousam 39 reis e rainhas, desde a primeira Margarida, repousando num caixão de pedra gótica, muitos Christians e Frederiks, esculpidos em pedra barroca ou de sérias linhas clássicas. Margrethe II, a actual monarca, tem um túmulo aqui já projectado.




A segunda atracção é o museu dos Vikings, construído sobre a água, que alberga os restos reconstruídos de 5 grandes embarcações Viking, encontradas no fundo do fjord nos anos 60. O museu inclui oficinas ao ar livre onde hoje se constroem réplicas destes esplêndidos navios, incluindo aqueles que no século X e XI aterrorizavam as costas da Inglaterra e Escócia.

Anette, a octogenária, é meia sueca, casou com um sueco e por lá deixou 4 filhos e 15 netos - "tentei muitos anos ser sueca, mas desisti, por isso voltei para a Dinamarca!" Enquanto come com apetite a salada de lentilhas e o pão escuro, fala um pouco de espanhol e português, que não esqueceu de há muitos anos atrás. Mora na rua que dá acesso ao adro da catedral, onde casou. "Já algum dinamarquês o convidou para sua casa? Pois, as pessoas perderam esse hábito...", um sorriso de ironia e vivacidade pendurado no canto da boca, enquanto mete ao bolso o resto do pão. "Venha, tenho o Ferrari à porta", e é um andarilho de rodas que usa para não cair nas calçadas escorregadias. A casa cheira a móveis velhos e a pó de arroz, as largas janelas abrindo-se sobre o fjord, por onde antes entravam os invasores noruegueses e suecos. Dentro de dias estará cheia da família, que vem passar o feriado da Ascenção. Apesar do papel de parede manchado e do bric-a-brac de velharias espalhadas pela cómoda, há um ar caseiro de conforto e segurança familiar. Será isto o que os dinamarqueses chamam Hyggely, a atmosfera íntima, o casulo onde sobreviver a invernos longos?

Quando me despeço e saio para o largo, vigiado pelas severas torres, ocorre-me que saí de Copenhaga para ir ver Vikings e reis mortos e acabei por conhecer uma verdadeira casa dinamarquesa e a sua ocupante, bem viva e mordaz.


Comentários

  1. Conhecer as casas e conversar com os habitantes é das coisas que mais gosto de fazer em viagem 😊😊

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