A miragem socialista

Chove como se não fosse parar nunca mais, aquela chuvinha parda e triste, sem fazer calor nem frio. Vamos espreitar Nowa Huta, o sonho socialista operário de Cracóvia, uma nova cidade construída a alguns quilómetros do centro apara servir uma mega-siderurgia. Esperava um desfilar de blocos cinzentos e depressivos, mas as avenidas largas sucedem-se surpreendentemente verdes e cuidadas, com grandes quarteirões residenciais que afinal têm alguma variedade e humanidade. De estômago vazio, procuramos em vão um local para tomar o pequeno-almoço à volta da grande praça de ar estalinista, solene. Resta-nos uma loja colorida de cafés e bolos, onde as duas moças de unhas de gel tentam entender-nos no seu inglês quase inexistente, enquanto se agarram ao whatsapp dos seus smartphones.





Em Nowa Huta vale a pena espreitar a igreja de Arka Pana, ou a Arca de Deus. Na neblina húmida do dia parece um cogumelo cinzento vista de fora, tranquila e silenciosa. Dentro, surpreendem-me dois gritos: o grande vitral colorido, como um arco-íris explosivo, e um enorme Cristo que se libertou da cruz e parece projectar-se no espaço vazio da igreja. Não é de estranhar: a igreja é um hino à liberdade, símbolo da oposição ao regime comunista que quis fazer de Nowa Huta uma “cidade sem deus”. Nos anos 50 foi ali erguida uma cruz, mais tarde proibida, até que finalmente a igreja surgiu por influência do arcebispo Wojtyla. Nos anos 80 foi palco de protestos em massa contra o regime, alguns com consequências sangrentas. 

Ao consagrar a igreja, o futuro João Paulo II declarou: “esta cidade… é uma cidade de pessoas sem pertença, pessoas com as quais se pode fazer de tudo, pessoas que podem ser manipuladas de acordo com as leis da produção e do consumo. Esta cidade é uma cidade dos filhos de Deus”.

A sul do Vístula, a fábrica de Oskar Schindler tem a mesma fachada que vimos no filme de Spielberg. Esperamos uma hora à porta, entre um divertido grupo de crianças a jogarem lengalengas e uma avó alemã com a sua neta espanhola de longas tranças. Hoje é um fantástico museu que nos leva a reviver a Cracóvia ocupada nos anos 39-45, com o seu quotidiano, o horror e a sobrevivência.




Saímos rumo a sul, depois de andar às voltas pelas vias rápidas dos subúrbios de Cracóvia (não ter GPS, ou que raio será Chyzne, que não aparece no mapa?). As colinas verdes sucedem-se, a estrada muito movimentada serpenteia e sobe, rumo aos Cárpatos, na fronteira com a Eslováquia.

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