Se Zimbra quiser...


Sesimbra, 10 de Agosto 2018

Pedro,
meu querido amigo,

Diz-se por aí que as virtudes da amizade são confirmadas nos tempos difíceis. Não poderá, contudo, ser menos real que um motivo fácil como viajar, percorrer o mundo e escolhê-lo como morada de endereço único, consiga por si, desenganar quem o assume como verdade absoluta. As cartas que trocamos ensinam-nos isso também... que a visão de dois Homens, em locais distintos, tocando-se eventualmente na partilha da atmosfera, dos acidentes geográficos ou da luz do sol, podem efetivamente gozar de uma perspetiva comum e de um sentimento unânime de amizade, de paixão pela viagem, pela escrita e pelo maravilhoso globo que reconhecemos como “a nossa Terra”.

Se Zimbra cá estivesse havia de concordar...

...que não poderia ter sido melhor escolhido, o lugar para eu iniciar estes encontros de letras soltas e conjugadas que, estou certo, atingir-te-ão sem cerimónia ou pudor, com maior ou menor eruditismo, com exagero bucólico ou gratuita parvoíce... é desta vila pequena, com coração gigantesco e pulmões hidratados pelo mar azul e pela serra que nos fará chegar aos cavalos marinhos do Portinho da Arrábida, que te escrevo hoje.

O sol concluiu a ultima parte do seu percurso antes de se apagar a poente quando, vagueando o olhar pela costa, imaginei a estória que me havia sido contada uns anos antes, pelo Zé Pedro, um velho pescador que, já sem rede, sem peixe e sem força sequer para enfrentar a plenitude da memória, me sorria, falando sobre um homem valente que desafiou o tirano, dono de várias terras, poderoso, e apoiante da lei pervertida que exigia de um novo casal o gozo da noiva antes do matrimónio. Zimbra defendeu assim, em seu nome e de Maria, sua esposa, a honra de todos os que por infortúnio da circunstância ou ausência de valentia, tinham até ali sofrido com a tradição do homem mau de quem dependiam.

Embora esta, como outras histórias validem com igual incerteza a origem etimológica do nome, lançando dúvidas sobre a nobre escolha, ninguém hesita em assumir o poder que o mar deu aos primeiros habitantes da encosta, fossem eles romanos, celtas, ou de outras raças e feitios. A razão silenciou-se no tempo, mas os vestígios de todos eles mantêm desperta a Sesimbra que conhecemos hoje. Se Zimbra quiser... pregava quem assim a batizou, ditou-me o velho, com a face gasta do sol e da vida.

O castelo de Afonso Henriques, parece, visto de baixo, um altar, de deslumbre para quem o olha desta perspetiva e o imagina habitado por reis, rainhas, aias e soldados... não deixando no entanto à imaginação a razão da sua existência integrada numa armadura composta com o Forte Joanino que abraça o mar, e que, embora com distinta data de nascimento e vários propósitos, segundo as conveniências régias, foi defensor da nação.

Se o olhar voasse, como fazem as gaivotas e cagarras que, de asas abertas, cumprimentam a paisagem, desfrutando dela e densificando-se na areia e nos rochedos que constroem o pontão de acesso ao farol, avistar-se-iam, do castelo, as ruínas santificadas do Cabo Espichel com uma vista tão perigosa quão fantástica sobre o atlântico que um dia terá sido usado também por veraneantes com pé de maior dimensão que a nossa, lá no período jurássico, e cujo testemunho consta no caminho que liga Sesimbra ao farol dessa ponta de terra lusa.



Aqui e ali, o cheiro a peixe grelhado invade o que junta a vontade de comer à arte de saborear um bom vinho das quintas de Palmela, seduzindo quem por ali anda a sentar-se e olhar em frente, apreciando o que um dia se julgou seguramente ser a divisão do planeta: o horizonte, longínquo mas encantadoramente desenhado ao fim da tarde.

Posso confessar-te, porque as minhas memórias ainda me permitem fazê-lo, que Sesimbra não tem hoje o encanto de outrora, quando descer as ruas apertadas nos bairros mais antigos nos obrigavam ao encontro com homens que desfiavam redes e as consertavam para que o peixe pudesse ficar la preso na madrugada seguinte, enquanto os assobios assinavam a tradição e ajudavam a passar o tempo. As boias de vidro, as réstias de seres marinhos, e o amanhecer tranquilo e mágico de um lugar simples, despretensioso e ao mesmo tempo fixante, deixaram de existir. No lugar disso, nasceram novos hotéis, alguns prédios mais modernos e parques de estacionamento para carros que não deixariam de fazer inveja a Zimbra e mesmo ao Tirano. Persistem ainda dos tempos remotos, o Hotel do Mar e o velho hospital. A marginal, que a certa altura comparo com o malecon de Havana, onde consigo adivinhar a chegada do velho de Hemingway na personagem de um daqueles homens de barba robusta, com camisolas aos quadrados e calças dobradas pela canela, carregando ao ombro um espadarte em metades, permanece sorridente num eterno abraço ao mar, mas as embarcações miúdas já não secam ao sol da baia e concentram-se na marina, junto ao porto.

Uma coisa é certa... se te despedires um dia da vila, antes da sua última curva, ascendida ao céu e em direção à capital, no exato momento em que o sol toca na água, vais entender bem o que te quero dizer quando insisto manter a minha paixão maior por esta terra... e estou certo, vais querer também cá voltar. Entretanto... até à vista!

Miguel Meira e Cruz



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os jardins florentinos

Pequim: primeiras impressões

A Sereníssima