Uhuru Peak: o tecto de África

Dia 7.
Sábado, 15 Fev 2014

Das 4 horas que tinha para dormir não consegui aproveitar muito. Mas à meia-noite deixamos os sacos-cama, última verificação da mochila, 4 camadas de roupa, óculos, polainas, bastões, reforços energéticos, água. Na tenda-sala engolimos à pressa biscoitos com chá quente, com um nervosinho miúdo cá dentro.

A noite está limpa, muito clara ao luar, 4ºC. No silêncio vemos já uma fila de pequenas luzes que sobe a crista rochosa acima de nós. A subida inicia-se, "pole, pole", um passo de cada vez. O primeiro patamar rochoso, mais abrupto, que é necessário ultrapassar deixa-me com uma ligeira dor de cabeça e obriga-me a respirar mais rápido. Depois, 200 metros mais acima, uma plataforma abrigada aloja um outro campo, mais pequeno - Kossovo. Começa então a extenuante subida que ziguezagueia pela vertente da montanha acima, sobre a qual lera dezenas de vezes.



Caminhamos concentrados, em silêncio, com paragens de hora a hora, poucos minutos apenas. Tudo dorme, apenas o som dos nossos passos no cascalho e a respiração ritmada nos acompanham. E no entanto, a noite é um deslumbramento, a neve brilha ao luar, nuvens dançam muito abaixo de nós. Apago o meu frontal e deixo a noite guiar-me.

À medida que a inclinação aumenta, a temperatura cai, abaixo dos zero graus. A meio do caminho, crescem cumulo-nimbos à nossa direita, dos lados do Mawenzi, os relâmpagos cruzam o céu. A tempestade parece estar em cheio sobre a rota Marangu, mas não sobe para o nosso lado, para meu alívio.

Cada passo é penoso, é necessário fincar bem os batons no solo vulcânico ou na neve que se vai tornando mais abundante. Aos 5600 metros, o Sérgio pede para parar, com alguns sinais de exaustão que nos preocupam um pouco. No entanto, as temperaturas não permitem grandes descansos. Seguimos, os três, escoltados de perto por Constantine e Freddie. Os últimos metros até ao bordo da cratera são terríveis, quando passamos já entre dois glaciares e se levanta um vento fortíssimo, gelado, tornando o equilíbrio difícil na vertente nevada. Eis Stella Point, estamos na cratera de Kibo, a 5760 metros. São 6 horas, é noite cerrada e parece o lugar mais inóspito do mundo, nem olho para a placa que congratula o montanhista, tal é o vento e o frio.


Seguimos agora pelo bordo da cratera, uma crista suave que ascende para oeste em direcção ao ponto mais alto de África, Uhuru Peak, ou "liberdade", tal como foi baptizado após a independência da Tanzânia. Nas nossas costas começa a surgir uma faixa de luz, primeiro ténue, depois laranja, cobrindo o Mawenzi e depois esticando-se pelo horizonte. E de repente tudo muda, o vento amaina, as formas intensificam-se, o branco sobre o negro, de uma limpidez impressionante. Vê-se agora todo o imenso topo do vulcão, a cratera interior coberta de neve e mesmo à nossa esquerda os campos de gelo eternos, de reflexos cor-de-rosa.




Esquecemos já o frio, eu e o Alex andamos excitados como crianças, tentando captar todas as imagens deste cume magnífico. Estamos sobre as nuvens, o sol nasceu já, no fim da vertente lá está a placa, um aglomerado de gente, as fotografias da praxe. Dou por mim a rir-me sozinho, com as emoções acumuladas de 7 dias de aventura. Eis o tecto de África, são 7h15 e estamos em Uhuru Peak, 5895 metros acima do mar! Há abraços, a bandeira portuguesa ao vento, está cumprido o desafio.

Às 8 horas é preciso voltar. Deste dia longuíssimo só se cumpriu ainda a primeira parte, há um desnível colossal de quase 2800 metros que é preciso descer!



A descida incia-se em Stella Point. A mesma inclinação, agora o cascalho vulcânico solto, instável, escorregadio, a tremenda tensão nos joelhos, as costas a queixarem-se do peso, os batons cravados no solo. Chego a Barafu desgastado, depois de 3 horas de descida tensa (com algumas idas ao chão...) mas brilha ainda o sol, sobem nuvens brancas pelas vertentes da montanha e o sorriso que não se apaga na cara.

Uma hora de descanso e almoço em Barafu. Impossível conciliar o sono, mas é uma benção esticar as pernas na tenda. Godliving, o nosso cook, esmera-se como sempre a alimentar-nos, que bem precisávamos.

Pelas 13h45 saímos de Barafu, para tomar Mweka Route. É uma rota de descida, directa até ao campo de Mweka, a 3100m. E é uma longa tortura, primeiro na monotonia de uma interminável crista rochosa e estéril, onde vemos na beira do caminho as carretas de uma só roda utilizadas para evacuar, à força de braços e a grande velocidade, os acidentados. Aos 4000m regressa a vida, as primeiras Everlastings, o verde aos poucos, e os joelhos a gemerem com tanto degrau de pedra sem fim.

O campo de Mweka é numa enlameada mata de cedros, o burburinho habitual, já tudo montado à nossa espera. O pico parece ter sido há tanto tempo já.

Altitude: 4640m - 5895m - 3090m
Tempo: 0h40 - 7h15 - 17h30 (16h50)









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